Interpretação do Contrato de Seguro: A Revolução Hermenêutica da Lei nº 15.040/2024

Liliana Orth Diehl
Liliana Orth Diehl

A partir de 11 de dezembro de 2025 a interpretação do contrato de seguro passará a ser regida por um novo conjunto de princípios e regras com o início de vigência da Lei n.º 15.040/2024, que alterou o regime jurídico securitário no Brasil.

A lei consolidou as regras de interpretação dos contratos já previstas nos artigos Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, a respeito da boa-fé e deveres correlatos, tais como colaboração e lealdade, estabelecendo que as cláusulas contratuais devem ser compreendidas de forma coerente com a função social do seguro e com a confiança legítima das partes.

O princípio da interpretação pró-aderente não é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, considerando os artigos 113, §1º, inciso IV e 423 do Código Civil, que impõe a boa-fé objetiva. Contudo, a Lei n.º 15.040/2024 eleva esse conceito nos contratos de seguro, incluindo regras específicas de hermenêutica contratual em uma seção exclusiva. A nova lei impõe regras claras para dissipar dúvidas e contradições, evitando que a complexidade técnica das apólices prejudique o hipossuficiente.

Um dos pilares da interpretação do contrato de seguro é a regra do artigo 56, que determina: “O contrato de seguro deve ser interpretado e executado segundo a boa-fé.” Essa norma, de caráter geral, impõe uma lente ética à análise de todo o instrumento, considerando não apenas o texto literal, mas o contexto negocial e as expectativas legítimas do segurado. A boa-fé aqui transcende o mero dever de lealdade, servindo como vetor resolver ambiguidades,

Mais incisivo é o artigo 57, que resolve dúvidas de forma inequívoca: “Se da interpretação de quaisquer documentos elaborados pela seguradora, tais como peças publicitárias, impressos, instrumentos contratuais ou pré-contratuais, resultarem dúvidas, contradições, obscuridades ou equivocidades, elas serão resolvidas no sentido mais favorável ao segurado, ao beneficiário ou ao terceiro prejudicado.” Tal disposição abrange não só o contrato propriamente dito, mas materiais promocionais e pré-contratuais, ampliando o escopo hermenêutico. Em casos práticos, como propagandas que prometem coberturas amplas, mas cujas apólices as restringem sutilmente, prevalece a versão mais benéfica ao contratante. Tal regra mitiga abusos, alinhando-se ao Código de Defesa do Consumidor independentemente da relação de ser considerada de consumo ou empresarial.

Adicionalmente, o artigo 59 impõe interpretação restritiva às cláusulas limitativas: “As cláusulas referentes a exclusão de riscos e prejuízos ou que impliquem limitação ou perda de direitos e garantias são de interpretação restritiva quanto à sua incidência e abrangência, cabendo à seguradora a prova do seu suporte fático.” Por essa regra, o ônus probatório recai sobre a seguradora, invertendo a lógica tradicional e reforçando a presunção de cobertura ampla. Exclusões de riscos, por exemplo, só se aplicam se descritas de modo cristalino.

A lei ainda traz regra de hierarquia interpretativa. De acordo com o artigo 58 “as condições particulares do seguro prevalecem sobre as especiais, e estas, sobre as gerais.” Trata-se de uma regra de resolução de conflitos internos no contrato, priorizando disposições mais personalizadas – frequentemente negociadas ou específicas ao risco assumido –, o que tende a beneficiar o segurado ao valorizar suas particularidades sobre generalidades padronizadas.

Fora da Seção X, específica de interpretação do contrato, o artigo 9.º, § 2º, aborda divergências entre as cláusulas contratuais e os modelos regulatórios, tais com Circulares SUSEP e Resoluções CNSP: “Se houver divergência entre a garantia delimitada no contrato e a prevista no modelo de contrato ou nas notas técnicas e atuariais apresentados ao órgão fiscalizador competente, prevalecerá o texto mais favorável ao segurado.” Existindo divergência entre o regulamento e o normativo predominará a disposição mais favorável ao segurado.

Da mesma forma, o artigo 48 reforça a nulidade de ambiguidades na formação contratual. O § 1.º exige que regras sobre perdas de direitos, exclusões e obrigações sejam “redigidas de forma clara, compreensível e colocadas em destaque, sob pena de nulidade.” O § 3º, por sua vez, remete a modelos depositados na SUSEP, prevalecendo o “mais favorável ao segurado” em ausência de especificação. E cláusulas em idioma estrangeiro são nulas (§ 2º), democratizando o acesso ao conteúdo.

Por fim, o artigo 81 estende o princípio de interpretação mais favorável ao segurado à fase de regulação de sinistros: “Em caso de dúvida sobre critérios e fórmulas destinados à apuração do valor da dívida da seguradora, serão adotados aqueles que forem mais favoráveis ao segurado ou ao beneficiário, vedado o enriquecimento sem causa.” Isso assegura que, na fase de liquidação, ambiguidades em cálculos não frustrem a efetividade da cobertura.

As novas regras não apenas codificam uma hermenêutica protetiva, mas incentivam as seguradoras a redigir apólices com maior transparência. Para o segurado significa maior segurança jurídica, para as relações contratuais o fortalecimento da função social do seguro e para o mercado a redução de litígios e o fortalecimento da credibilidade do setor.

 

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